sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Uma “fonte de piedade” para reconstruir o homem

Diante do mal que, de muitas formas, marca este nosso tempo, contra a “globalização da indiferença” [1], a voz dos grandes artistas nos lembra o que é autenticamente humano. 
Nesse sentido, propomos as palavras de Luigi Giussani ao apresentar o famoso Requiem de Mozart na Coleção Spirto Gentil. Através da música deste compositor, Giussani nos leva a compreender que o mal não é a última palavra. Há no mundo uma “fonte de piedade” que permite que o homem seja reconstruído. Basta aceitá-la.


Por Luigi Giussani

Mozart, artista supremo e profundamente cristão, representa no Requiem o mal do homem, o ódio do mundo, a maliciosidade do pecado dentro do resplendor da misericórdia de Deus.

Por um lado, ele nos introduz com a sua música na tremenda escolha do homem que recusa Deus. A palavra que melhor exprime esta recusa é esquecimento e indica uma experiência própria do adulto. A criança, de fato, é distraída, mas o homem não pode ser distraído. Por isso o esquecimento é uma recusa. Pode haver uma injustiça ou um crime mais grave? Imaginemos uma criança ainda no seio materno, que possa pensar, isto é, que já seja consciente e recuse sua mãe, negue, esqueça sua mãe, da qual é constituída a cada instante, através de um fio de comunicação da vida que lhe é dada.  A injustiça do mundo é o esquecimento de Deus, a injustiça na sua vida e na minha vida é o esquecimento de Deus, este é “o crime” do qual todos os outros crimes derivam.
Podemos identificar a fonte da recusa e, por isso, a fonte do mal, o mal do mundo, que se torna nosso. Todos aceitariam Jesus, enquanto permanecesse o antigo símbolo do Menino Jesus, fonte de ternura, de bondade, evocação do bem, o símbolo do valor moral. Quando começa a recusa? Quando, diria Péguy, “começa a Sua missão”. A missão de Jesus não é aquela de lembrar os valores morais, mas é a pretensão de ser Ele o Salvador do mundo, o Salvador da minha vida. Se isso é verdade, somente Ele se torna o ponto de onde nascem as características que a minha vida e a sociedade devem ter: a minha vida e a vida da sociedade devem depender dEle. Isto é intolerável para o mundo e, portanto, intolerável, não obstante as reticências, para nós mesmos. O homem pretende saber aquilo pelo qual a vida é justa; se não tem aquilo que deseja possuir, e no modo no qual o deseja, então se rebela. É inegável que esta é uma injustiça, é a injustiça.
No entanto, no Requiem, estamos diante de um paradoxo: de fato, ao mesmo tempo, na mesma frase se diz: “Rei de tremenda majestade... doa o teu perdão, Senhor Jesus piedoso, doa-lhes o repouso”. Então, o tremendo e o piedoso, a justiça e a misericórdia estão juntos. E, ainda mais paradoxal, a misericórdia superará o mal da injustiça; a misericórdia é maior que a condenação, transborda os termos a que chega a condenação. Por isso, o perdão ou a misericórdia constituem um fator decisivo para a definição do pecado, cristãmente falando, porque entrando no pecado o mudam. Não é a exaltação da postura protestante na qual o Cristo faz tudo sem o homem: é o pecador que grita, é o pecador que no pecado pede, já no pecado pode pedir. O espaço entre o esquecimento e a retomada torna-se impalpável, não mensurável.
Cada frase do Requiem (como a música evidencia) começa com a afirmação incontrastada do domínio da justiça e da verdade e, subitamente, é como que interrompida por algo que se introduz e adoça repentinamente aquela dureza de justiça, aquela afirmação acre de verdade, amacia-a num pedido, numa súplica que sabe que pode ser feita. “Rex tremendae majestatis”: Rei de terrível majestade, que nenhum homem pode tocar (a torre de Babel é o emblema do esforço coletivo de toda a humanidade para poder destronar Deus, para poder conceber um mundo sem Deus). Mas depois, de repente, “Qui salvandos salvas gratis”, que tem vontade de salvação, gratuita, amorosa, “Salva me, fons pietatis”, salva a minha vida, fonte de amor.
Como nos ensina Péguy, “Aquilo que precisamente é o desastre é que as nossas próprias misérias não são mais cristãs”. A grande questão é que o homem é originalmente ferido. Que as misérias sejam cristãs significa, fundamentalmente, que as nossas misérias tenham a consciência de si mesmas como nascidas do pecado original, desta ferida mortal. Nós nascemos com uma ferida mortal, como uma criança que não pode sobreviver e está para morrer. Que “as nossas próprias misérias não são mais cristãs” significa, antes de mais nada, o esquecimento, a obliteração, a censura total, na vida e na cultura, na minha vida, na vida de cada um de nós, do pecado original, do fato que nascemos com uma quebra, uma ferida, uma deformação mortal. Ferida ou deformação mortal quer dizer que nós não podemos ser nós mesmos: nascemos sem poder ser nós mesmos. Contudo, não há nenhum ato verdadeiro na nossa vida consciente, se não parte da consciência de sermos pecadores.
Neste mundo anticristão, descristianizado, o homem não tem possibilidade de perdão, não sabe o que quer dizer perdão, não sabe o que quer dizer ser perdoado e por isso não pode reconstituir-se, não pode reconstituir a si mesmo porque para reconstituir a si mesmo deve sentir-se perdoado. A miséria cristã é aquela que se sente invadida, cercada e abraçada pelo perdão, como uma criança nos braços da mãe. “Rex... qui salvandos salvas grátis, salva me, fons pietatis”: é disso que o homem precisava, que eu preciso, hoje, agora: uma “fons pietatis”, uma fonte de piedade. Então, eu reconstituo a mim mesmo, recomeço a ser eu mesmo.
Mas [continua Peguy] Jesus veio. Ele não gastou os seus anos lamentando-se e interpelando a maldade dos tempos. Ele atalha. De um modo muito simples. Fazendo o cristianismo.” Jesus veio, a origem, a fonte de piedade, a “fons pietatis” veio. A fonte da piedade vem, vem agora; como uma mãe olha e abraça a sua criança. Você pode tê-la esquecido até agora, pode não a ter conhecido até agora: agora existe. Jesus vem e sem demora o que faz? Não contesta os malditos, não calcula, não julga, não antecipa o juízo universal para evitar a sua amargura eterna: Ele faz o cristianismo. O que quer dizer fazer o cristianismo? O cristianismo é o vínculo que Cristo estabelece com você, não o vínculo que você estabelece com Cristo, mas que Cristo estabeleceu com você, que estabelece com você. Chama-se aliança e Deus é fiel a sua aliança. O cristianismo é o acontecimento do vínculo que Cristo estabeleceu com você. Consequentemente, é necessário dizer sim a este vínculo. Dizer sim ao vínculo que Cristo estabeleceu com você é a decisão para a existência.

Notas:
[1] FRANCISCO. Mensagem para a Quaresma de 2015: Fortalecei o vosso coração. Vaticano, 4 de outubro de 2014. Disponível aqui.

Nenhum comentário:

Postar um comentário