sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Para novos inícios


O Brasil está em queda livre. Cada dia subseguem-se nos jornais as notícias desta queda: falta de energia e de água; corrupção acarretando a gravíssima crise da Petrobrás e a perda da credibilidade internacional; crise das indústrias e planos de demissões, voluntárias e involuntárias, crise da educação em geral e das instituições universitárias; alta do dólar e do câmbio; inflação; violência cada vez mais presente em todos os níveis do cotidiano das pessoas etc.

Nesta hora, para todos os brasileiros, já deve ter ficado clara a distância entre a aparência das promessas eleitorais dos meses passados, e a realidade da grave crise que assombra o País. E para muitos brasileiros possivelmente está ficando claro o fato de que uma ideologia não tem a capacidade de sanar as feridas de que o Brasil sofre, resquícios de um sistema político injusto que, ao longo da história, tem sido causa de graves desigualdades sociais, de menosprezo pelo valor e a dignidade do trabalho humano, de uma lógica iníqua segundo a qual o enriquecimento de alguns acontece à custa do empobrecimento de muitos. A superação da injustiça não acontece pela ideologia, e sim por uma posição humana capaz de justiça em sua ação, como assinalado lucidamente pela filósofa política Hannah Arendt: “nenhuma permanência, nenhuma perseverança da existência podem ser concebidas sem homens decididos a testemunhar aquilo que é, e que lhe aparece porque é” [1].
O que é mais grave diante da situação do Brasil neste momento é algo que foi assinalado em artigo escrito por Fernando Gabeira, no Estado de São Paulo do dia 30 de janeiro de 2015 (clique aqui): o descolamento entre a política (e os políticos) e a vida real. Os fatos estão acontecendo, sem que um juízo e um posicionamento concreto sejam assumidos. Este descolamento pode ser visto nos políticos e governantes, como também nos cidadãos, os quais, tomados pelo desânimo e diante da impossibilidade de se manifestar nas ruas (pela presença de grupos de vândalos armados e pagos para desfigurar o teor democrático e pacífico das manifestações), tendem a se refugiar no comodismo, no individualismo, na queixa impotente. Diante do imobilismo conivente dos intelectuais, paralisados em seus próprios esquemas ideológicos, ou entretidos em carreirismos vaidosos, os brasileiros, talvez esquecidos da capacidade criativa presente em sua própria cultura, não recorrem a ela para inventar formas diferentes de se manifestar e de exercer sua cidadania e reivindicar seus direitos e, sobretudo, sua dignidade de pessoas e de povo, diante das aberrações da corrupção, do descaso, da mentira. 

Mas a situação atual requer e, num certo sentido, pode ser ocasião de novos inícios da vida política nacional. Um “novo começo da história”, afirma Arendt (2000), “antes de se tornar um evento histórico, é a suprema capacidade do homem; politicamente equivale à liberdade do homem” [2]. MacIntyre (2001) lembra que, em momentos decisivos da história, marcados pelo declínio de uma civilização e pelo surgimento de formas de barbárie, houve pessoas dotadas dessa liberdade, que começaram a “construir formas locais de comunidade, dentre as quais se pudesse sustentar a civilidade e a vida intelectual e moral” [3].   
Para que aconteçam “novos inícios”, é preciso resgatar o verdadeiro sentido da política, sua conexão essencial com a vida e suas exigências. Atualmente, a política parece estar mais conectada à pura luta pelo poder, transformando o que deveria ser instrumento em finalidade, e ao favorecimento de interesses particulares. Num momento assim, o que significa que a política deva ser um instrumento para responder à exigência da dignidade e da justiça que se expressa na demanda por um trabalho digno e por uma justa remuneração? O que significa também que a política sirva para corrigir e punir as ações corruptas e iníquas que lesam a todos e empobrecem cada vez mais os mais pobres? O que quer dizer que a política deva propor formas de viabilizar a exigência do bem que se encarna em relações sociais construtivas e que afirmem o bem individual e comum? Ou, ainda, que ela deva se atentar para a exigência de bem e de beleza que implica todo empenho e cuidado para com a preservação da natureza e com o decoro do ambiente da vida urbana?
Dizia Giussani, em 1987, a um grupo de políticos italianos: “a política, como mais completa forma de cultura, só pode ter como preocupação fundamental o homem” [4]. “O homem é uma unidade, um eu, e o que lhe dá forma é aquele elemento dinâmico que, por meio das perguntas, das exigências fundamentais com que se exprime, guia a expressão pessoal e social do homem” [5]. Se, como escreve Arendt (2000), ocorrer “a perda do próprio eu”, “o homem perde a confiança em si mesmo como parceiro dos próprios pensamentos, e perde aquela confiança elementar no mundo que é necessária para que se possam ter quaisquer experiências” [6]. Nesse sentido, “a responsabilidade do homem, mediante todos os tipos de solicitações que lhe vêm do impacto com o real, compromete-se com a resposta a estas perguntas” e exigências fundamentais que o caracterizam [7]. Dentre elas, as exigências da justiça, da verdade, da liberdade, da beleza, do amor. 
Não podemos, portanto, renunciar a esta responsabilidade que dá sentido ao exercício da política autêntica: “é preciso”, continua Giussani, “cuidar para que o P (poder) não esteja em proporção com um I (impotência), porque então o poder se tornaria prepotência diante de uma impotência, que é fruto da redução sistemática dos desejos, das exigências e dos valores” [8]. Parece-nos que este cuidado seja especialmente necessário neste momento da vida do País. Pensamos o Núcleo Cultural Lux Mundi, como “forma local de comunidade” onde se sustenta uma “vida intelectual e moral” atenta a essas exigências e valores.  

Notas
[1] ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Editora Perspectiva, 2003, p. 285.
[2] ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 531.
[3] MACINTYRE, Alasdair. Além da Virtude. Bauru: EDUSC, 2001, p. 441.
[4] GIUSSANI, Luigi. O eu, o poder, as obras. São Paulo: Cidade Nova, 2010, p. 162.
[5] Ibid.
[6] ARENDT, 2000, p. 529.
[7] Ibid.
[8] GIUSSANI, 2010, p. 163.

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