quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

O Lux Mundi na Zenit

A agência Zenit publicou, sob o título "Diante da eclosão dos terrorismo no mundo há uma forte negação do valor da pessoa", a primeira contribuição do Núcleo Cultural Lux Mundi. Como o momento traz à tona, uma vez mais, o problema do terrorismo, resolvemos deixar no alto do blog o conteúdo dessa nossa primeira postagem.
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O grande equívoco
Diante da eclosão dos terrorismos no mundo, estamos assistindo a enfrentamentos: por um lado, a sociedade europeia, norteada pelas ideologias da modernidade e da pós-modernidade, posicionando-se a favor da “liberdade de expressão”; por outro lado, outras sociedades, que poderíamos definir tradicionais, posicionando-se a favor de valores absolutos que em nenhum caso devem ser blasfemados e violados. As reações diante destes enfrentamentos são várias, como as de quem, como Contardo Calligaris (vide Folha), vem declarando que a única certeza absoluta que deve ser afirmada e unir as pessoas é a “de não ter certeza nenhuma”.
Mas estas duas posições a confronto têm algo em comum: negar o valor da pessoa ou submetê-la a "valores" mais altos como seriam a afirmação de uma ideologia, seja religiosa, seja niilista. Ambas são, neste sentido, derivadas da grave doença da razão moderna que dissocia o pensamento (a ideologia) da realidade (as pessoas), abrindo o caminho ao totalitarismo da ideologia (seja ela nazista, fascista, marxista ou fundamentalista), como percebeu H. Arendt.
Nisto, é grave a responsabilidade da sociedade ocidental que, em nome da ideologia, abriu mão de um fato cultural que a norteava e que, devido a este processo de dissociação, lentamente, mas inexoravelmente, desconstruiu: a afirmação do valor absoluto da pessoa humana e de sua dignidade. Herança da tradição cultural clássica e medieval do ocidente cristão, este valor, mesmo que constantemente violado, contestou ao longo da história todas as violências perpetradas contra pessoas, grupos e povos; formulou-se em uma concepção antropológica, filosófica, jurídica, médica; inspirou a criação de obras para cuidar das pessoas como hospitais e escolas, obras sociais.
A pessoa é caracterizada por um dinamismo que a liga ao transcendente, ao mistério - mesmo quando ateia - que Giussani chamou de senso religioso ou experiência elementar. Neste sentido, há uma conexão incindível entre valor da pessoa e religiosidade. Com efeito, “pelo simples fato de viver cinco minutos, um homem afirma a existência de um quid pelo qual vale a pena, no fundo, no fundo, viver aqueles cinco minutos. É o mecanismo estrutural da razão, é uma implicação inevitável” (O Senso religioso, Editora Universa, 2009, p. 87).
Este fenômeno característico do humano foi tematizado no conceito de pessoa da cultura ocidental. Como observou o antropólogo Marcel Mauss, outras culturas, ainda que percebam a evidência da individualidade de cada um, não têm o conceito de pessoa. Por isto, dentre outras, o direito delas admite pena de morte (como estamos vendo nestes dias na Indonésia com o brasileiro condenado à morte por tráfico de droga, ou na Arábia Saudita com a mulher condenada à morte por adultério, etc...). A história dessas culturas não possui a herança do conceito e do valor da pessoa; mas a cultura ocidental tinha esta herança e abriu mão dela, desconstruindo seus alicerces na prática (por exemplo, através do colonialismo e da aceitação tácita da escravatura) e na teoria (Nietszche, com o seu pensamento, mas também com sua vida e morte, assinala o ponto de chegada desta desconstrução), até chegar a gerar os totalitarismos nazistas e estalinistas. Vários autores têm levantado a voz assinalando esta doença da razão moderna (Husserl, Dostoiévski, Arendt, MacIntyre, entre outros), mas apesar disto continuou-se ainda no século XXI este processo autodestruidor.
Num romance genialmente profético de Dostoiévski - Os Demônios (Editora 34, 2004) - diante da negação de Deus e de todos os valores feita por um grupo de jovens iluministas e niilistas russos, cujo único ideal seria iniciar a revolução que destruiria o status quo, é relatada uma conversa entre algumas pessoas sobre ateísmo: “numa certa altura, um capitão de cabelos grisalhos, o tempo todo sentado, sempre calado, sem dizer uma palavra; de repente se posta no centro do cômodo e fala em voz alta como se falasse consigo: ‘Se Deus não existe, então que capitão sou eu depois disso?’ pegou o quepe, ficou sem saber o que dizer e depois saiu”. (p. 228).
Comenta Giussani este trecho: “se não é possível um nexo último, uma explicação última, se não é possível sair da medida do instante para ligar-se ao todo (porque o problema é justamente sair do instante, o que significa ligar-se com o todo), então não posso mais estabelecer nenhum nexo, fico bloqueado no meu momento. (...) o significado é o nexo que você estabelece saindo de si mesmo, saindo do instante, colocando-se em relação” (op. cit., p. 179-180).
Ou seja, se negarmos o fato de que “ao ser humano é necessário saber e acreditar em cada momento que há em qualquer parte do mundo uma felicidade perfeita e calma, para tudo e para todos” e que “a lei da existência humana consiste em que o homem pode sempre inclinar-se perante o infinitamente grande” não temos como continuar afirmando o valor de nossa própria pessoa: “se privássemos disso o homem, este não quereria viver e morreria desesperado”.  (Dostoiévski, op.cit., 2004, p. 642)
Os fatos destas semanas mostram como os valores iluministas e laicistas não têm a capacidade de garantir nada e são impotentes diante do terrorismo. É fato que os países onde este recente terrorismo se alimentou e cresceu são os berços do multiculturalismo laicista, como a Bélgica, onde até os nomes das festividades religiosas tradicionais foram banidos e onde a eutanásia, inclusive infantil, é aceita e defendida até com violência.
Estamos, na verdade, diante de um novo credo fundamentalista: a crença laicista na autonomia absoluta da instintividade e na negação de qualquer verdade, até mesmo da verdade como fenômeno objetivo que leva a razão e o indivíduo a reconhecer as evidências do real. Mas este credo não se sustenta diante da constatação objetiva de nossa dificuldade cada vez maior de reconhecer a dignidade da pessoa, da desordem afetiva que domina os relacionamentos, do fato de seus novos gurus defenderem o prazer, mas serem incapazes de buscar a felicidade. Esta é a raiz deste novo fundamentalismo, pois todas as crenças – cristãs, islâmicas ou agnósticas – se tornam fundamentalistas quando perdem a capacidade de se autojustificar racionalmente diante das pessoas.
Paradoxalmente, o multiculturalismo que apaga as identidades e a própria tradição, proposto por essa nova crença, torna-se o berço da violência. Por isto, os fatos atuais exigem que a intelectualidade ocidental repense também suas tomadas de posição ideológicas. Se for verdade – como comentou parte do mundo muçulmano – que também as ideias e as expressões midiáticas podem ser violentas, está na hora de se interrogar acerca da ideologia desconstrucionista e niilista que vigora hoje na educação dos jovens.
Marina Massimi
Paulo R. A. Pacheco
Rodrigo S. Borgheti

Um comentário:

  1. Gostaria de comentar a seguinte passagem do texto: "A pessoa é caracterizada por um dinamismo que a liga ao transcendente, ao mistério - mesmo quando ateia - que Giussani chamou de senso religioso ou experiência elementar. Neste sentido, há uma conexão incindível entre valor da pessoa e religiosidade. Com efeito, “pelo simples fato de viver cinco minutos, um homem afirma a existência de um quid pelo qual vale a pena, no fundo, no fundo, viver aqueles cinco minutos. É o mecanismo estrutural da razão, é uma implicação inevitável” (O Senso religioso, Editora Universa, 2009, p. 87).
    Daisaku Ikeda (budista) diz: "(...) Deve-se levar em conta que segundo o budismo, a vida humana em cada momento abarca todos os fenômenos e se estende ilimitadamente por todo o Universo. O potencial de uma única pessoa é infinito em termos de tempo e espaço. Por isso o foco do Budismo de Nichiren Daishonin não está na adoração a deuses e sim na 'fé de que esta vida, em seu estado indiferenciado e em suas manifestações individuais, merece total reverência'". (Revista TC, ed. 556, dez.2014, p.19)

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